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Imunidades deletadas

A matéria “Imunidades que protegiam poderosos foram deletadas” é de autoria do repórter Frederico Vasconcelos e foi publicado no site Interesse Público:

O advogado Cesar Asfor Rocha admite que foram significativos em 2017 os avanços no que toca à Justiça. Mas, em relação ao ano que começa, as mudanças políticas “ainda são um escuro enigma”.

“Hoje, até mesmo vereditos do Supremo Tribunal Federal são discutidos e desafiados”, diz. O juiz brasileiro jamais foi tão acompanhado pelos jurisdicionados.

Ele prevê que o o Judiciário continuará tendo um protagonismo inédito.

Asfor Rocha registra a manutenção de uma incerteza em 2018: “Mesmo sem alteração de regra legal ou constitucional, entendimentos jurisprudenciais antes consolidados sofreram bruscas alterações”.

Cesar Asfor Rocha é ex-presidente do Superior Tribunal de Justiça.

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Já se disse que a justiça brasileira mudou mais nos últimos 20 anos que em toda a sua história. Se as transformações ocorridas em 2017 ainda não estão assentadas, o que dizer das que virão em 2018? Como o tempo psicológico anda diferenciado do cronológico, é impossível prever esse tipo de métrica em meio às frequentes alterações que nos surpreendem.

A Constituição de 1988, quase inaplicável à época da sua elaboração, face às inovações arrojadas que impôs, hoje se assemelha a um conjunto de normas óbvias. As esferas de imunidade que protegiam ricos e poderosos foram deletadas.

Assim como o país deu passos trôpegos até encontrar-se na Constituição e nas leis dela decorrentes, agora luta para absorver avanços nas regras trabalhistas e, quiçá, previdenciárias. As mudanças políticas ainda são um escuro enigma. Mas no que toca à justiça, temos que admitir que os seus avanços foram significativos.

Ainda que o emocionalismo deixe frequentemente os olhos confusos, o juiz brasileiro jamais foi tão acompanhado pelos jurisdicionados. Cada brasileiro acha-se com autoridade para comentar e criticar – com ares de sabedoria – decisões ainda que proferidas pelo Supremo.

O entendimento de que a sentença judicial deve ser cumprida – como era dogma em passado recente – perdeu a força axiomática. Hoje, até mesmo vereditos do STF são discutidos e desafiados.

Na alvorada de 2018, que cenário esperar das disputas políticas, se há perplexidade quanto à deferibilidade de registros? E essa imprevisibilidade se verifica nas disputas federal e estaduais, como se fosse uma praga daninha infestando a política do país.

Já se vê que o Judiciário continuará tendo um protagonismo inédito, gerando incerteza o fato de que, mesmo sem alteração de regra legal ou constitucional, entendimentos jurisprudenciais antes consolidados sofrerem bruscas alterações, afetando todos os ângulos do direito, com maior incidência no direito sancionatório (penal, administrativo e eleitoral).

As discussões mais significativas são quanto ao foro especial; ao cumprimento da pena já após a condenação em segundo grau; à condução coercitiva de acusados que sequer sabiam da investigação; e à invalidade de delações premiadas, vazadas na mídia, antes da necessária homologação judicial, com a punição dos responsáveis.

São temas relevantes, cujo alinhamento a qualquer das teses decorrerá da filiação a ideologias que vão do punitivismo radical ao garantismo extremado, por se entender que a Justiça nunca deve ser instrumento de martírio, perseguição, revides e sofrimentos.

Por mais que o julgamento pelas regras em vigor até há pouco tenha perdido a sua mística é preciso dar, pelo menos, o benefício da dúvida a quem questione algumas condenações e prisões preventivas longevas.

Os avanços serenos são mais venturosos que os elaborados ao impulso de movimentos passionais; as regras nascidas de princípios terão maiores chances de sobrevivência que os casuísmos que não se escoram na razão estabilizadora.

Não há pressa. Temos tempo para examinar o que resultará deste período que a justiça brasileira vive, descobrindo a eficácia de mecanismos até então inéditos e praticando o seu uso sem excessos e com a mente aberta para apreender as suas virtudes, sem amesquinhar o plexo de direitos subjetivos que foram a grande salvaguarda das liberdades das pessoas.

Não se poderá construir um futuro de confiança, destruindo as heranças culturais de nosso passado e, sobretudo, o sentimento humanístico que foi a bandeira de tantas conquistas que devemos preservar.